sexta-feira, 5 de março de 2010

Brasileiros de gênio precoce

Raul Pompéia tinha 25 anos quando terminou O Ateneu, um dos grandes romances da língua portuguesa. Alvares da Azevedo já tinha uma obra considerável quando morreu aos 21 incompletos. Idem Castro Alves com 24. E olha que não eram modernistas.

Geneton

O programa de entrevistas de Geneton de Moraes Neto na Globonews é uma das melhores coisas da TV brasileira. Pena que eu raramente consiga ver. Mas recentemente assisti ao bate-papo de Geneton com o poeta alagoano Ledo Ivo. Sensacional. Perguntas inteligentes, respostas lúcidas e bem humoradas, uma delícia. Ledo Ivo, 86 anos, é um grande poeta, mas igualmente um conversador maravilhoso, e gostei de constatar que concordamos em muita coisa sobre poesia e literatura brasileira (assim com eu, Ivo detesta a primeira geração de modernistas! O que diferimos é na pessoa desta antipatia – ele considera Oswald um babaca, já eu acho babaca Mario de Andrade). Geneton, com seu acentuado sotaque pernambucano, escreve bem e é um habilíssimo entrevistador - é inteligente, bem informado, culto e não abre mão de fazer perguntas polêmicas, para apimentar a conversa. Mas sempre com classe, fazendo a abordagem certa, exata. Ao longo do tempo, formou uma coleção de grandes entrevistas na TV (e em livros e jornais). Andei fuçando e descobri que seu blog no site G1 tem boa parte das entrevistas transcritas na íntegra – descobri também que ele já tinha uma página anteriormente, em que fazia a mesma coisa, portanto é possível ler entrevistas dos últimos 16 anos entre opções como Paulo Francis, Tom Jobim, Roberto Carlos, Gabeira, Chico Buarque, Milvina Dean (última sobrevivente do Titanic) etc. Os links são os seguintes: http://colunas.g1.com.br/geneton/ e http://www.geneton.com.br/. Abaixo, alguns poemas de Ledo Ivo e uma brincadeira do grande João Cabral de Melo Neto com o amigo/colega alagoano.

Ledo Ivo jovem, por João Cabral - falso epitáfio

“Aqui repousa/ Livre de todas as palavras/ Ledo Ivo/ Poeta/ Na paz reencontrada de antes de falar/ E em silêncio, o silêncio de quando as hélices param no ar “.

Ledo Ivo - Asilo Santa Leopoldina

"Todos os dias volto a Maceió. Chego nos navios desaparecidos, nos trens sedentos, nos aviões cegos/ Que só aterrizam ao anoitecer. Nos coretos das praças brancas passeiam caranguejos. Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar. Fluindo docemente dos sacos armazenados nos trapiches e clareiam o sangue velho dos assassinados. Assim que desembarco tomo o caminho do hospício. Na cidade em que meus ancestrais repousam em cemitérios marinhos. só os loucos de minha infância continuam vivos e à minha espera. Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos e gestos obscenos ou espalhafatosos. Perto, no quartel, a corneta que chia Separa o pôr-do-sol da noite estrelada. Os loucos langorosos dançam e cantam entre as grades. Aleluia! Aleluia! Além da piedade. a ordem do mundo fulge como uma espada. E o vento do mar oceano enche os meus olhos de lágrimas".

Ledo Ivo - O Desconforto

"O dia está cheio de palavras. Elas escorrem como a água das sarjetas ou a saliva da boca dos demagogos. Espalham-se no chão como as folhas de um outono excessivo. Transbordam das lixeiras junto com as latas de Coca-Cola e restos de comida. São piolhos que avançam na selva da tarde. Ninguém pode viver sem as palavras. Isto explica o desconforto dos passageiros do metrô. Condenados a um silêncio temporário eles se entreolham suspeitosamente na plataforma da estação e estremecem quando as portas do trem se fecham. Embalados pêlos solavancos de uma viagem sem paisagem ouvem os vagões rangerem nos trilhos taciturnos na escuridão que sustenta o clamor da cidade. É o que sobra do rumor do mundo. Mas eles querem o instante em que, devolvidos ao dia loquaz, voltarão a falar".

Ledo Ivo - A Queimada

“Queime tudo o que puder: as cartas de amor, as contas telefônicas, o rol de roupas sujas, as escrituras e certidões, as inconfidências dos confrades ressentidos, a confissão interrompida, o poema erótico que ratifica a impotência, e anuncia a arteriosclerose, os recortes antigos e as fotografias amareladas. Não deixe aos herdeiros esfaimados nenhuma herança de papel. Seja como os lobos: more num covil, e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados. Viva e morra fechado como um caracol. Diga sempre não à escória eletrônica. Destrua os poemas inacabados,os rascunhos, as variantes e os fragmentos, que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas. Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha. Não confie a ninguém o seu segredo. A verdade não pode ser dita”.

Accent

Mal uma aspirante a modelo desembarca em São Paulo e já está reproduzindo a fala pós-patricinha abonada que se tornou dominante em parte da cidade, com vogais estendidas, pronúncia veloz e 'erres' pronunciados. Ex: "Ah saaaaabe, nem sei se eu queeeero ir". Para quem não conseguiu identificar, Gisele Bündchen fala escancaradamente dessa forma - quem não souber que ela é gaúcha do interior, não tem como adivinhar. É interessante. Esse sotaque - que se restringe ao sexo feminino jovem (os meninos têm preferido imitar o jeito de falar dos 'manos', bem fake por sinal) - é recente (entre outras falas novas), simplesmente não existia até o começo dos anos 1990. Coincide com a própria afirmação de São Paulo como cidade dominante e polo cultural do país, deixando de ser o eterno patinho feio e caipira em comparação com o Rio, cujo declínio se acentuou não por coincidência a partir dessa mesma época (mas que felizmente está sendo revertido pouco a pouco). Isso tem se refletido na televisão, já que de uns tempos pra cá, atores que falam com sotaque de São Paulo - qualquer um - continuam com ele, sem se deixar 'contaminar' pelo belo sotaque carioca - até bem pouco tempo isso não acontecia, é só lembrar Luana Piovani, paulista de São Bernardo do Campo que virou carioca da gema já na segunda fala de alguma novela ou minissérie. Angélica (Santo André) idem - Glória Menezes, Fernanda Montenegro e Tony Ramos são exceções. Mas o que me fez escrever este post é uma outra coisa. Nem todas as meninas que vem de fora se sentem à vontade para falar daquela forma. Noto que as que chegam para trabalhar em profissões mais humildes geralmente continuam a se expressar em seus sotaques de origem, Brasil a fora. E é evidente que não se trata de falta de habilidade para reproduzi-lo, ou ausência de contato com outras jovens que o praticam. Arrisco dizer que elas não cogitam falar 'patricinha' porque não se sentem no direito - por não possuir o status social que se exige para se comunicar naquele código. Mas, por linhas tortas - já que os motivos não se justificam - acho bom que assim seja, porque o sotaque patty me soa mal, não só pela sonoridade discutível, mas porque entrega uma postura deliberadamente fútil e meio ignorante.