quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Confessionário

Que texto maravilhoso escreveu Armando Antenore sobre a grande Tomie Ohtake, na revista Bravo! deste mês. Brincando com o português precário da artista, mas sem nunca soar esnobe, o jornalista alterna passagens em que se faz passar por ela (na primeira pessoa) com descrições tradicionais em terceira pessoa, resumindo com maestria sua trajetória e pontos de vista. A revista também traz, ente outras boas reportagens -, um perfil de primeira classe da editora inglesa Liz Calder, idealizadora da Flip, assinada por ninguém menos que Thomaz Souto Correa (com reportagem de Cecília Brandi).

PS: a Bravo! reduziu em um terço seu preço em banca (de 14,90 para 10 reais), uma tacada inteligente, que parece ter influenciado positivamente na qualidade do seu conteúdo, visivelmente melhor que algumas edições que li no passado recente. Boa notícia.

http://armandoantenore.com.br/index.php/confessionario/tomie-ohtake

Iñarritu/Arriaga

Não suporto essa dupla - picaretas que se deram bem no cinema enganando trouxas influentes. Argh.

I can't stand it no more (1979)

Peter Frampton, beleza de música.

http://www.youtube.com/watch?v=pXBo-ynknsM

Afiador de facas

Há um afiador de facas que circula por Cerqueira César e Jardim Paulista. Talvez mais de um. Dá para ouvir bem, mesmo no 12º andar. Na verdade, não sei se seu trabalho é afiar facas, mas o interessante é que ele toca um instrumento musical semelhante a uma gaita* - não seria um realejo, já que não tem manivela, e suponho que a música não é predefinida, tem de ser tocada. Voltando ao (possível) afiador dos Jardins, suas frases musicais - sem ligação aparente, entremeadas de silêncio e às vezes bastante dissonantes - soam bem.

Caso a música não seja fruto de improviso (mais interessante que não seja), fico curioso se ela veio de outro afiador, ou se cada um compõe repertório próprio, mas com características (quais?) que sempre remetam ao ofício, que o identifique à primeira audição - razão primeira do instrumento nesse contexto. Só perguntando! Ou pesquisando.

* Conversei rapidamente com um afiador, no íncio de fevereiro. O instrumento é um tipo de gaita, sim, chamada por eles de Gaita do Ary; as melodias são transmitidas pelos veteranos aos que se iniciam na profissão. Há uma canção conhecida de Teixeirinha, "A Gaita Velha do Seu Ary", talvez o nome venha daí (com o perdão da rima!).

Dois artigos

Demétrio Magnoli começa 2011 tão inspirado quanto terminou 2010. Segue na íntegra (por meio do ótimo site Conteúdo Livre http://sergyovitro.blogspot.com/) dois artigos publicados no Estadão (às quintas-feiras alternadas), ambos brilhantes.

700 mortos e 8 passaportes  - 20/01/2011

Marco Aurélio Garcia qualificou como assunto "de uma irrelevância absoluta" a concessão de passaportes diplomáticos aos filhos e netos de Lula. Ele, certamente, considera relevante a tragédia que ceifou mais de 700 vidas e destruiu cidades inteiras na Região Serrana do Rio de Janeiro. Os dois eventos, cujos impactos sobre a vida nacional são incomparáveis, estão relacionados, ainda que indiretamente. Eles, além disso, têm igual relevância, pois procedem da mesma fonte: a delinquência atávica de uma elite política hostil ao interesse público.

A lei é cristalina ao listar os critérios que regulam a concessão de passaportes diplomáticos. O ex-ministro Celso Amorim violou a lei, a pedido de Lula, quando presenteou a prole estendida do ex-presidente com o privilégio reservado aos representantes do Estado. O gesto ilegal não é amenizado, mas agravado pelo recurso cínico à invocação do "interesse nacional". O que o Ministério Público precisa para acusar o ex-ministro e o ex-presidente de abuso de autoridade?

Certos grupos ambientalistas propensos à mistificação culpam as mudanças climáticas globais pela catástrofe no Rio de Janeiro. Mas as precipitações torrenciais e os deslizamentos em encostas de morros fazem parte da dinâmica climática e geomorfológica normal das serras do Sudeste brasileiro. A intensidade das chuvas não é explicação suficiente das causas de uma das maiores tragédias humanas da história do País. Uma urbanização descontrolada, com ocupação extensiva de encostas de morros e várzeas inundáveis, moldou o cenário do desastre. Os mortos, as famílias devastadas, os desabrigados são o produto de décadas de escolhas políticas baseadas numa racionalidade avessa ao interesse público e, muitas vezes, às próprias leis. O que o Congresso Nacional precisa para instalar uma CPI dedicada à investigação do enredo completo da tragédia anunciada?

O patrimonialismo "é a vida privada incrustada na vida pública", segundo a definição de Octavio Paz. Na sua trajetória rumo ao poder, o lulismo conectou-se com um anseio profundo da sociedade brasileira ao fazer a denúncia sistemática de uma elite política consagrada ao intercâmbio de privilégios oriundos do controle do aparelho de Estado. Lula tocou um nervo exposto com seus "300 picaretas do Congresso", tirada irresponsável que se converteu em canção popular e sintetizou a bandeira de mudança com a qual alcançaria o Planalto. De lá para cá, ele e seu partido traíram noite e dia o compromisso original. A emissão dos passaportes diplomáticos equivale a uma abjuração escrita: o presidente que sai transforma a corrupção em virtude, zombando da "lei das gentes".

Não há mais de 700 mortos no Rio de Janeiro porque Lula concedeu à sua descendência o privilégio ilegal, mas porque a elite política que hoje Lula personifica zomba da "lei das gentes". Cada uma das áreas de risco ocupadas na Região Serrana fluminense tem a sua história singular. Alguns bairros surgiram por incúria das autoridades públicas. Outros se estabeleceram sob o amparo de acordos espúrios entre loteadores e políticos em cargos de mando. Prefeitos e vereadores formaram clientelas eleitorais estimulando a ocupação de vertentes e várzeas, ou apenas condescendendo com a violação das normas. A catástrofe foi tecida com os fios de uma política que combina populismo, patrimonialismo e clientelismo. Na Austrália, inundações muito mais amplas deixaram um saldo de mortes que se conta na casa de poucas dezenas, não de várias centenas.

Lula e os seus não se limitaram a absorver os usos e costumes da elite política estabelecida, mas foram bem mais longe, produzindo uma espécie de elogio público do patrimonialismo. O ex-presidente proclamou a inimputabilidade de José Sarney (o "homem incomum"), mudou a lei para beneficiar a empresa financiadora do negócio de seu filho e, na hora da despedida, comportou-se como um potentado, oferecendo passaportes diplomáticos aos familiares com a desenvoltura de um pai que distribui ovos de Páscoa. Como exigir de autoridades estaduais e municipais o respeito à lei, a adesão à norma, quando a República se transfigura na fazenda dos Lula da Silva?

"Sempre tem a hora de fazer avaliação. Tem que se fazer uma autocrítica, por que se permitiu fazer tudo isso. Mas agora é resgatar corpos e ajudar famílias desabrigadas. Não vamos perder tempo nesse momento." O governador Sérgio Cabral não é mais responsável pela tragédia que seus predecessores ou que os prefeitos, vereadores e lideranças locais da Região Serrana do Rio de Janeiro. Contudo, ao fabricar uma acusação preventiva contra os críticos, ameaçando crismá-los como inimigos da ajuda às vítimas, revela-se mais inteligente - e muito mais nocivo ao interesse público. A sua operação de linguagem tem o objetivo de suspender o debate político enquanto perdurar a emergência humanitária. É a receita certa para proteger a elite política que parasita a sociedade.

Uma tristeza avassaladora começou a se espalhar pelo Brasil inteiro com as primeiras imagens da tragédia. A memória dos mais de 700 mortos merece um monumento que não seja feito de pedra nem se preste à demagogia das inaugurações políticas. O monumento só pode ser um programa plurianual ambicioso de reconstrução das cidades devastadas e remodelação estrutural dos padrões de ocupação do solo na Região Serrana fluminense e em inúmeras outras cidades e corredores urbanos do País. Os recursos para tanto existem, mas serão queimados na pira ardente das obras colossais da Copa do Mundo e da Olimpíada.

As chuvas de janeiro provocaram um trauma nacional duradouro. O verão não terminou. As águas da destruição ainda podem apagar o fogo do desperdício sem freios e das negociatas fabulosas promovidas em nome do orgulho nacional. É a única homenagem verdadeira que os vivos podem prestar aos mortos.

Herói sem nenhum caráter - 24/12/2011

Lula jamais protestou contra o monopólio da imprensa pelo governo cubano e nunca deu um passo à frente para pedir pelo direito à expressão dos dissidentes no Irã. Ele sempre ofereceu respaldo aos arautos da ideia de cerceamento da liberdade de imprensa no Brasil. Mas é incondicional quando se trata de Julian Assange: "Vamos protestar contra aqueles que censuraram o WikiLeaks. Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta."

Assange é um estranho herói. No Brasil, o chefe do WikiLeaks converteu-se em ícone da turba de militantes fanáticos do "controle social da mídia" e de blogueiros chapa-branca, que operam como porta-vozes informais de Franklin Martins, o ministro da Verdade Oficial. Até mesmo os governos de Cuba e da Venezuela ensaiaram incensá-lo, antes de emergirem mensagens que os constrangem. Por que os inimigos da imprensa independente adotaram Assange como um dos seus?

A resposta tem duas partes. A primeira: o WikiLeaks não é imprensa – e, num sentido crucial, representa o avesso do jornalismo.

O WikiLeaks publica – ou ameaça publicar, o que dá no mesmo – tudo que cai nas suas mãos. Assange pretende atingir aquilo que julga serem "poderes malignos". No caso de tais alvos, selecionados segundo critérios ideológicos pessoais, não reconhece nenhum direito à confidencialidade. Cinco grandes jornais (The Guardian, El País, The New York Times, Le Monde e Der Spiegel) emprestaram suas etiquetas e sua credibilidade à mais recente série de vazamentos. Nesse episódio, que é diferente dos documentos sobre a guerra no Afeganistão, os cinco veículos rompem um princípio venerável do jornalismo.

Agente original A imprensa não publica tudo o que obtém. O jornalismo reconhece o direito à confidencialidade no intercâmbio normal de análises que circulam nas agências de Estado, nas instituições públicas e nas empresas.

A ruptura do princípio constitui exceção, regulada pelo critério do interesse público. Os "Papéis do Pentágono" só foram expostos, em 1971, porque evidenciavam que o governo americano ludibriava sistematicamente a opinião pública, ao fornecer informações falsas sobre o envolvimento militar na Indochina. A mentira, a violação da legalidade, a corrupção não estão cobertas pelo direito à confidencialidade.

Interesse público é um conceito irredutível à noção vulgar de curiosidade pública. Na imensa massa dos vazamentos mais recentes, não há novidades verdadeiras. De fato, não existem notícias – exceto, claro, o escândalo que é o próprio vazamento. A leitura de uma mensagem na qual um diplomata descreve traços do caráter de um estadista pode satisfazer a nossa curiosidade, mas não atende ao critério do interesse público. O jornalismo reconhece na confidencialidade um direito democrático – isto é, um interesse público. O WikiLeaks confunde o interesse público com a vontade de Assange porque não se enxerga como participante do jogo democrático. É apenas natural que tenha conquistado tantos admiradores entre os detratores da democracia.

Há, porém, algo mais que uma afinidade ideológica, de resto precária. A segunda parte da resposta: os inimigos da liberdade de imprensa torcem pelo esmagamento do WikiLeaks por uma ofensiva ilegal de Washington.

No Irã, na China ou em Cuba, um Assange sortudo passaria o resto de seus dias num cárcere. Nos EUA, não há leis que permitam condená-lo. As leis americanas sobre espionagem aplicam-se, talvez, ao soldado Bradley Manning, um técnico de informática, suposto agente original dos vazamentos. Não se aplicam ao veículo que decidiu publicá-los. A democracia é assim: na sua fragilidade aparente encontra-se a fonte de sua força.

Sorriso furtivo O governo Obama estará traindo a democracia se sucumbir à tentação de perseguir Assange por meios ilegais. O WikiLeaks foi abandonado pelos parceiros que asseguravam suas operações na internet. Amazon, Visa, PayPal, Mastercard e American Express tomaram decisões empresariais legítimas ou cederam a pressões de Washington? A promotoria sueca solicita a extradição de Assange para responder a acusações de crimes sexuais. O sistema judiciário da Suécia age segundo as leis do país ou se rebaixa à condição de sucursal da vontade de Washington? Certo número de antiamericanos incorrigíveis asseguram que, nos dois casos, a segunda hipótese é verdadeira. Como de costume, eles não têm indícios materiais para sustentar a acusação. Se estiverem certos, um escândalo devastador, de largas implicações, deixará na sombra toda a coleção de insignificantes revelações do WikiLeaks.

A bandeira da liberdade nunca é desmoralizada pelos que a desprezam, mas apenas pelos que juraram respeitá-la. Assange não representa a liberdade de imprensa ou de expressão, mas unicamente uma heresia anárquica da pós-modernidade. Contudo, nenhuma democracia tem o direito de violar a lei para destruir tal heresia. A mesma ferramenta que hoje calaria uma figura sem princípios servirá, amanhã, para suprimir a liberdade de expor novos Guantánamos e Abu Ghraibs.

"Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta." Lula não teve essa ideia quando Hugo Chávez fechou a RCTV, nem quando os Castro negaram visto de viagem à blogueira Yoani Sánchez que lançaria seu livro no Brasil. Não a teve quando José Sarney usou suas conexões privilegiadas no Judiciário para intimidar Alcinéa Cavalcante, uma blogueira do Amapá, ou para obter uma ordem de censura contra O Estado de S. Paulo. Ele quase não disfarça o desejo de presenciar uma ofensiva ilegal dos EUA contra o WikiLeaks. Sob o seu ponto de vista, isso provaria que todos são iguais – e que os inimigos da liberdade de imprensa estão certos.

Alguém notou um sorriso furtivo, o tom de escárnio com que o presidente pronunciou as palavras "total e absoluta"?