terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Os incomuns e os anormais

Tem gente que confunde ter uma vida incomum com ter uma vida anormal. E a explicação costuma vir da tentativa de decalcar a vida de algum ídolo, que, como todo ídolo, geralmente tem uma vida incomum devido à fama e ao sucesso (e dinheiro), mas não necessariamente leva uma vida anormal - já que a maioria se casa, tem filhos (ou adota), cria e educa esses filhos, sai com amigos etc. Essas pessoas acham que, detonando a tudo e a todos, vão conseguir se aproximar desse ídolo de alguma forma - supostamente imitando o estilo de vida daqueles artistas mais instáveis. Por isso viram junkies, alcoólatras, são arrogantes etc, etc, e tudo o que conseguem é levar uma vida anormal. Mas, se tivessem talento, iriam à luta para conseguir o que realmente almejam, que é fama e sucesso, ou seja, uma vida incomum, e nada demais nesta pretensão. Mas para isso teriam que trabalhar muito, e essa gente, além do escasso talento, não é chegada a suar a camisa. Mesmo um ex-junkie como Iggy Pop, teve de ralar muito para chegar onde chegou, e neste caso havia um talento descomunal e o destino atuando a seu favor (evitando que morresse). Viva Iggy Pop, o mais autêntico dos pop stars vivos.

Um PS

Não tenho nada contra o fato de Walter Salles ser um herdeiro bilionário, não mesmo. Reconheço que ele se tornou um cineasta de renome internacional à custa de trabalho e esforço próprios. Não subestimo o sucesso de ninguém - por isso respeito o sucesso da Xuxa, por exemplo, que igualmente precisou de doses de talento e trabalho para chegar onde chegou. Só que não sou obrigado a admirar o trabalho dela, não é verdade? Assim como não me sinto obrigado a aplaudir Walter Salles, pelo prosaico motivo que acho sua obra fraca, equivocada. De qualquer forma, pelo menos Salles não é pretensioso como Eduardo Coutinho, nosso "gênio" do cinema direto. Depois quero falar algo a respeito de sua obra.

De novo ele

Outra pérola de Salles é aquele curta que ele realizou para o filme Paris Te Amo (ou algo assim), em que vários cineastas convidados fizeram pequenos filmes usando a cidade como tema, nada muito original, mas tudo bem. Bom, em nova parceria com Daniela Thomas (sempre ela!), Salles resolveu atacar de... crítica social, claro. Resumindo a história, que já é bem curta. Uma bela colombiana, mãe de um bebê recém-nascido, não tem tempo de cuidar dele, já que precisa se deslocar todo o santo dia de seu quarto e sala de um distante distrito parisiense a um bairro chique na parte velha da cidade, onde trabalha de babá o dia todo para uma família de milionários - franceses com pedigree. Quanta contradição e injustiça, meu Deus! O filme é isso, mais nada, muito sutil. Para Salles, deveria ser proibido ser mãe e trabalhar para outras mães. Melhor que ela trabalhasse num bar, por exemplo – ser garçonete parece mais cool. Talvez fosse melhor ela não trabalhar, e gozar de merecida licença-maternidade, para poder se dedicar ao filho etc, etc. É claro que a situação não é a ideal, mas quem disse que a realidade de sua vida difícil na Colômbia não seria bem pior? Quem disse que o fato de trabalhar temporariamente como babá (com um salário nada desprezível) seria assim tão ultrajante, tão “contraditório”, ou mais contraditório que ser garçonete? Não precisa ser um Freud para palpitar que Salles deve ter tido a presença de babás em sua vida, e que isso, além do fato de ser um herdeiro bilionário, deve lhe provocar alguma culpa etc e tal. Daí a sair por aí realizando filmes demagógicos e populistas foi um pulinho – não sem antes mergulhar nas “contradições” do mundo rico e ultra tecnológico do Japão – quem sabe foi lá que teve seu “estalo”, estalo que o fez alterar a rota, literalmente. Não importa. O fato é que esse filmeco tb passou batido pela crítica brasileira, que não viu nada de errado com ele – um crítico conhecido teve a pachorra de escrever em seu blog que o filme de Salles era um dos destaques entre todos os curtas do longa!! Verdade que os demais não eram grande coisa, mesmo - gostei de um ou dois, se tanto (o de Gus Van Sant). Mas para mim é inegável que o filme de Salles conseguiu ser, de longe, um dos piores. É isso, viva nosso cinema tacanho e nossa crítica indulgente. Argh.

Pérola e sintoma

Tem uma cena em Linha de Passe, de Walter Salles, que considero sintomática de muita besteira a que já nos habituamos no Brasil, e não só no cinema. É aquela, já no final, em que o motoboy que decidiu virar marginal já está em seu segundo ou terceiro assalto, mas as coisas dão errado, e ele, para fugir da polícia, seqüestra um carro com o motorista dentro, obrigando este – com um revólver apontado para sua cabeça - a seguir com ele. Depois de um tempo, o assaltante obriga o dono do carro – que está visivelmente apavorado – a parar no meio de um campo de futebol de terra, já na periferia da cidade (São Paulo). Assim que o carro pára, dá-se uma verdadeira jóia da demagogia contemporânea. O diálogo exato não saberia reproduzir aqui, porque faz quase um ano que assisti ao filme, então reproduzo o sentido geral da coisa. O assaltante está muito nervoso e irritado, até aí tudo bem, isso seria de se esperar, já que é inexperiente e está lidando pela primeira vez com a possibilidade real de ser preso. Mas em seguida ficamos sabendo que a principal causa de sua irritação não é o medo, mas o fato de constatar que o fulano que está sendo sequestrado (só isso...) prefere não olhar diretamente para ele, assaltante. Isso, sim, seria o fim da picada e inaceitável... Fica subentendido que o filme encampa essa visão de mundo, reforçando que o dono do carro deve ser mesmo um boçal que merece passar pelo aperto que está passando - afinal, possui um "carrão" (!). Segue imediatamente o seguinte diálogo, um instant classic: “vocês da elite nunca olham para a gente, então olha agora, pelo menos, tô mandando“ etc, etc. O coitado, a contragosto, encara o rapaz, e faz-se um suspense sobre se haverá ou não uma execução. O happy end é que o assaltante libera o cara e sai correndo, que gesto mais nobre... Simplesmente patético, porque a tentativa de transformar a vítima em criminoso e vice-versa não é mais tentativa, é fato. E é duplamente equivocada, já que o filme não está sendo leviano apenas com quem “tem carros novos” – os eternos mauzinhos e culpados por todas as mazelas brasileiras – mas tb com a classe dos motoboys e pobres em geral, pois é como se todos eles estivessem a um passo da marginalidade, o que é altamente preconceituoso, absurdo, além de mentiroso. Mas nada como ser um bilionário descolado e premiado para poder cometer esse tipo de idiotice sem que a grande imprensa publique sequer UMA LINHA a respeito. Porque procurei na época, e não encontrei nada, claro, então decidi registrá-la aqui. Mas antes fosse só uma derrapada. Não é. O Brasil já virou, e faz tempo, o paraíso da demagogia barata, e ela passou a ser necessária inclusive para se obter financiamento público. Argh.