quarta-feira, 24 de março de 2010

Não dá

O prelúdio coral em Fá menor, de Bach (BWV 639), que consta de Solaris (1972) - Tarkovski foi um fervoroso admirador do gênio alemão - é daquelas peças que justificaria por si só a fama eterna de qualquer compositor, por mais obscuro. Vale a bela máxima de Carlos Drummond sobre Pelé, sobre quem escreveu, a propósito de seu milésimo gol, que o difícil não seria fazer mil gols como ele, mas um gol como ele. Bach escreveu mais de 400 horas de música (o equivalente, no mínimo, a uns 600 CDs no formato canção), boa parte de suma importância para seu meio de expressão. Bem, aí Pelé já ficou em algum lugar muito distante e modesto na história da humanidade, com todo o respeito que lhe é devido.

Daime

Sobre o caso do consumo do daime, não se questiona que no Brasil seu uso é legal, por motivos religiosos e/ou terapêuticos. Até aí, ok. Mas por que não obrigar a todos – não só os consumidores que fazem parte de seitas, mas também os pacientes que buscam no daime a cura de algumas doenças – um exame clínico que constate a boa saúde psíquica dessas pessoas, antes da ingestão do chá? Para citar um exemplo banal, a partir dos 35 anos, quem resolve se inscrever num academia de ginástica, é obrigado, antes de mais nada, a fazer um caro exame de avaliação cardiovascular, para atestar que está apto a fazer os exercícios – ou seja, tem de provar que dificilmente vai cair duro na academia. Então qual seria o problema de, antes de se autorizar o uso da droga, exigir exames para qualquer um que pretenda experimentá-la, seja pelo motivo que for? Acontece que a legislação brasileira não exige isso, e a aprovação do uso, ao menos na seitas, fica a critério dos tais ‘líderes religiosos’, como explica o editorial da Folha de S. Paulo de hoje, que saiu em defesa do daime como se este e as próprias seitas que o utilizam estivessem sob ataque, uma postura estranha - mesmo considerando que o jornal perdeu de forma brutal e absurda uma de suas estrelas, não se justifica qualquer tipo de corporativismo, até porque Glauco não precisaria desse expediente. O fato é que, como esses religiosos não são ou não precisam ser médicos, acho que tudo passa a girar em falso. Segundo a última edição da revista Veja, o pai do assassino de Glauco chegou a procurar o cartunista, advertindo que o filho tinha problemas, mas foi ignorado. Não se trata, absolutamente, de tentar incutir culpa na própria vítima da tragédia, mas se o exame médico fosse obrigatório e sério, será que o rapaz conseguiria ser aprovado para passar a consumir o daime? Não acredito que esse raciocínio possa ser associado, em absoluto, com algum tipo de preconceito religioso. E calar-se para não correr esse risco (absurdo) soa péssimo, e seria evocar os piores tempos em que as patrulhas delegavam para si o que podia e o que não podia ser debatido - felizmente a internet está inviabilizando esse viés totalitário da visão única.