quinta-feira, 15 de abril de 2010

Haja

O que não falta é gente de classe média alta gritando que existe vida inteligente e interessante na periferia, como se o normal fosse não ter, ou como se o esperado seria que ninguém que não fosse pobre pudesse conceber tal realidade, a não ser alguns iluminados - os que gritam, claro. Não raro, costumam apontar dedos acusatórios contra as injustiças sociais. Aliás, esse raciocínio não se limita à periferia propriamente dita. No filme Edifício Master, por exemplo, um Eduardo Coutinho com cara de supreso nos mostra a riqueza e complexidade da vida de algumas pessoas de classe média baixa de Copacabana, como se essa complexidade tivesse de soar uma revelação para o espectador das classes médias mais altas. Para mim, trata-se de preconceito puro e simples - e bem mais com os pobres do que com "ricos". Agora, por exemplo, leio que duas publicitárias, que estão lançando um documentário sobre a periferia de SP, teriam se encantado com a 'rede de solidariedade' constatada nos bairros, baseada na ajuda mútua que acontece não só entre pessoas da mesma família, mas também entre vizinhos, realidade muito diferente da dos bairros dos 'incluídos', em que estes geralmente mal se cumprimentam etc. e tal. Sim, é uma atitude que inspira admiração, mas que na prática só existe porque as dificuldades extras do dia a dia assim o exigem, como nas guerras. No fundo, nenhuma novidade nisso - a humanidade gera o bem e o mal de modo heterogêneo, e às vezes simultâneo, no tempo e no espaço. O ideal é que a precariedade material dos que vivem na periferia diminua até deixar de existir, e estas pessoas possam ser amigas de vizinhos não por necessidade, mas por vontade, afinidade, enfim, por opção individual. Mas para que isso aconteça é preciso fazer mais do que eleger governos populistas, que só usam a questão social em causa própria e não ajudam a promover o desenvolvimento. O que me irrita nisso tudo é a impressão de que os que se mostram tão encantados com a luta diária da população pobre parecem preferir, mesmo que inconscientemente, que pouco ou nada mude para eles, e assim se preserva ad eternum esta admiração - são os reaças do 'bem'. É a mesma linha dos que - como Ariano Suassuna - desejam que a literatura de cordel dure para sempre. Bom, se a vida daqueles artistas melhorar, talvez esta forma de arte acabe, talvez não, mas seria egoísta e absurdo preferir que eles não tenham outras opções de vida, que por sua vez podem proporcionar diferentes opções estéticas. Parece óbvio e é.

Nenhum comentário: