terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pérola e sintoma

Tem uma cena em Linha de Passe, de Walter Salles, que considero sintomática de muita besteira a que já nos habituamos no Brasil, e não só no cinema. É aquela, já no final, em que o motoboy que decidiu virar marginal já está em seu segundo ou terceiro assalto, mas as coisas dão errado, e ele, para fugir da polícia, seqüestra um carro com o motorista dentro, obrigando este – com um revólver apontado para sua cabeça - a seguir com ele. Depois de um tempo, o assaltante obriga o dono do carro – que está visivelmente apavorado – a parar no meio de um campo de futebol de terra, já na periferia da cidade (São Paulo). Assim que o carro pára, dá-se uma verdadeira jóia da demagogia contemporânea. O diálogo exato não saberia reproduzir aqui, porque faz quase um ano que assisti ao filme, então reproduzo o sentido geral da coisa. O assaltante está muito nervoso e irritado, até aí tudo bem, isso seria de se esperar, já que é inexperiente e está lidando pela primeira vez com a possibilidade real de ser preso. Mas em seguida ficamos sabendo que a principal causa de sua irritação não é o medo, mas o fato de constatar que o fulano que está sendo sequestrado (só isso...) prefere não olhar diretamente para ele, assaltante. Isso, sim, seria o fim da picada e inaceitável... Fica subentendido que o filme encampa essa visão de mundo, reforçando que o dono do carro deve ser mesmo um boçal que merece passar pelo aperto que está passando - afinal, possui um "carrão" (!). Segue imediatamente o seguinte diálogo, um instant classic: “vocês da elite nunca olham para a gente, então olha agora, pelo menos, tô mandando“ etc, etc. O coitado, a contragosto, encara o rapaz, e faz-se um suspense sobre se haverá ou não uma execução. O happy end é que o assaltante libera o cara e sai correndo, que gesto mais nobre... Simplesmente patético, porque a tentativa de transformar a vítima em criminoso e vice-versa não é mais tentativa, é fato. E é duplamente equivocada, já que o filme não está sendo leviano apenas com quem “tem carros novos” – os eternos mauzinhos e culpados por todas as mazelas brasileiras – mas tb com a classe dos motoboys e pobres em geral, pois é como se todos eles estivessem a um passo da marginalidade, o que é altamente preconceituoso, absurdo, além de mentiroso. Mas nada como ser um bilionário descolado e premiado para poder cometer esse tipo de idiotice sem que a grande imprensa publique sequer UMA LINHA a respeito. Porque procurei na época, e não encontrei nada, claro, então decidi registrá-la aqui. Mas antes fosse só uma derrapada. Não é. O Brasil já virou, e faz tempo, o paraíso da demagogia barata, e ela passou a ser necessária inclusive para se obter financiamento público. Argh.

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